Círculo de Eros: o paradoxo amoroso em “O Banquete”

 

bergmangrantnotorius

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine” (S. PauloPrimeira Epístola aos Coríntios/13-13:1)

“É um fogo que arde sem se ver / É ferida que dói e não se sente / É um contentamento descontente / É dor que desatina sem doer” (Camões)

“O Amor é um cão dos diabos” (Charles Bukowski)

Vivemos tempos estranhos. Talvez todos os tempos tenham sido estranhos (ao menos para boa parte da população, afinal, os costumes sempre se alteram e novas ideias e tecnologias surpreendem as gerações que se sucedem), mas neste início de milênio observamos que o “amor” (ou uma das suas formas) vem causando estranheza aos mais velhos. Certa tendência ao hedonismo, uma crescente “virtualização” dos sentimentos em função da internet, a opção pela efemeridade absoluta das relações – com o “ficar” (verbo que se tornou substantivo) – e uma sedução quase incontrolável despertada por objetos materiais oferecidos no mar de propagandas de TV – que misturam corpos, sentimentos e coisas – parecem ser armas apontadas para o coração,  referência à metafórica “morada do amor”.

Apesar de possíveis divergências entre gerações com relação aos costumes, o fato é que o amor resiste, exibindo múltiplas faces.  “É difícil encontrarmos palavra mais ambígua e desconcertante do que a palavra amor”, diz FROMM (1983). “Ela é empregada para indicar quase todo sentimento à exceção de ódio e aversão”, salienta o pensador alemão.

Segundo COMTE-SPONVILLE (2011), o amor não só é o tema mais interessante para a maioria de nós, mas qualquer outro tema só despertaria nosso interesse à medida que tivéssemos “amor” por ele. Ou seja, para o pensador francês, ainda que alguém diga, por exemplo, “o que mais me interessa não é o amor, é o dinheiro”, estaria apenas revelando seu “amor” pelo dinheiro.

Assim, o termo remeteria a uma pluralidade de sentimentos que diferem tanto pelo seu objeto (amor maternal, amor à pátria etc) quanto pela sua finalidade (do desejo sexual ao “amor puro” dos teólogos – aquele que visa ao próprio Deus). É certo, porém, que a maior parte das pessoas normalmente utiliza o termo “amor” para descrever um sentimento (ou uma soma de sentimentos) em relação a outra pessoa (ou outras pessoas) por quem se sente mais fortemente atraída ou pela qual (pelas quais) sente mais apego. No entanto, diante de um interlocutor que nos indagasse “O que é o amor?”, teríamos de responder filosoficamente com outra pergunta: “De que amor você está falando?”.

Ao verificarmos o que diz o verbete “amor” no Dicionário HOUAISS encontramos as seguintes definições (há outras, mas, por hora, essas nos bastam para dar uma ideia da visão genérica sobre o tema):

  1. Forma de interação psicológica ou psicobiológica entre pessoas, seja por afinidade imanente, seja por formalidade social.
  2. atração afetiva ou física que, devido a certa afinidade, um ser manifesta por outro.

2.1 forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de relações sociais

2.2 atração baseada no desejo sexual; afeição e ternura sentida por amantes (…).

No “Dicionário Básico de Filosofia”, os brasileiros JAPIASSU e MARCONDES (2011) definem o amor como “tendência da sensibilidade suscetível a transportar-nos para um ser ou um objeto reconhecido ou sentido como bom”, e exemplificam: “o amor materno, o amor à glória”. Outra acepção do termo, segundo eles: “Sentimento de inclinação e de atração ligando os homens uns aos outros, a Deus e ao mundo, mas também o indivíduo a si mesmo. Em outras palavras, inclinação para uma pessoa, sob todas as suas formas e em todos os graus, desde o amor-desejo (inclinação sexual) até o amor-paixão e o amor sentimento”.

Os autores enumeram também os amores ablativo, puro e platônico. O primeiro, eles descrevem como “tendência oposta ao egoísmo, ao amor possessivo, pois se define pela doação e pelo devotamento ao outro”. O exemplo, aqui, seria o “amor ao próximo”. Já o chamado amor puro, de acordo com JAPIASSU e MARCONDES (2011), é o que se tem “apenas para com Deus, na mais total e perfeita gratuidade”. Quanto ao amor platônico, segundo eles, “é aquele que prescinde de toda sensibilidade para alegrar-se com as belezas intelectuais ou espirituais e com a essência mesma do belo”.

Para ABBAGNANO (2012), os gregos viram no amor principalmente uma força unificadora e harmonizadora, e a entenderam com base no amor sexual, na concórdia política e na amizade. Platão foi quem primeiro deu tratamento filosófico ao amor. No texto platônico, diz ele: “Foram apresentados e conservados os caracteres do amor sexual; ao mesmo tempo, tais caracteres são generalizados e sublimados. Em primeiro lugar, o amor é carência, insuficiência, necessidade e, ao mesmo tempo, desejo de conquistar e de conservar o que não se possui. Em segundo lugar, o amor volta-se para a beleza, que outra coisa não é senão o anúncio e a aparência do bem, logo, desejo do bem. Em terceiro lugar, o amor é desejo de vencer a morte (como demonstra o instinto de gerar, próprio de todos os animais. (…) Em quarto lugar, Platão distingue tantas formas do amor quantas são as formas do belo, desde a beleza sensível até a beleza da sabedoria, que é a mais elevada de todas e cujo amor, isto é, a filosofia, é, por isso mesmo, o mais nobre.” (ABBAGNANO – 2012).

Outra historiadora da filosofia tem opinião semelhante. Segundo RUSS (2003), o amor é um termo que adquire sua plena riqueza filosófica na Antiguidade grega com “O Banquete”, de Platão. “Por este impulso em direção ao Belo e ao Bem, não participamos do Absoluto?”, indaga a pesquisadora francesa.  Em seu “Dicionário de Filosofia”, nas definições gerais (que serão seguidas de definições de alguns filósofos), ela menciona a etimologia da palavra amor (do latim amor, significando o próprio amor, a afeição e o “vivo desejo”) e destaca então o sentido do termo na Filosofia e na Psicologia (“inclinação – passional – na direção de uma pessoa ou mesmo de um objeto considerados ‘bons’”) e na Moral “tendência oposta ao egoísmo, desinteressada, que versa geralmente sobre um valor. Ex: amor pela  justiça.” (RUSS – 2003)

Muitos filósofos abordaram o tema ao longo dos anos. Schopenhauer (1788-1860) disse que “o amor é apenas o desejo das espécies de sobreviverem; a necessidade de propagar as espécies”. Por outro lado, Nietzsche (1844-1900),  habitualmente um iconoclasta, é até certo ponto condescendente com o amor: “Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”, afirmou ele, admitindo que até mesmo certa dissimulação seria aceitável na arte de amar: “Quando amamos, queremos que os nossos defeitos permaneçam escondidos… não por vaidade, mas para que o ser amado não sofra. Aquele que ama gostaria mesmo de parecer um deus… e também isto não se deve à vaidade”. 

COMTE-SPONVILLE (2011) observa certa semelhança entre o teor da frase do inquieto filósofo alemão e o espírito do Novo Testamento, aquele que Santo Agostinho (354-430) resumiu numa frase: “Ame e faça o que quiser”. Evidentemente, esses pensadores correm em raias opostas com relação à religiosidade. O que COMTE-SPONVILLE (2011) pretende enfatizar aqui é a supremacia do amor sobre a moral nas duas citações: “(…) É o espírito do amor, com ou sem Deus: quando existe amor, já não é preciso se preocupar com moral, dever, obrigação; é só agir por amor e basta.”

Mas, em seguida, o filósofo faz uma importante ressalva: “Sim, quando existe amor… No entanto, na maioria das vezes, é claro, ele não existe.” (COMTE-SPONVILLE, 2011). O amor é antes uma virtude do que um dever, diz, esclarecendo as diferenças entre as duas coisas: “Digamos que o dever está do lado da obrigação, da coerção, do ‘imperativo’ , como diz Kant (logo, para o indivíduo, do lado da submissão ou da obediência), enquanto a virtude está mais do lado da potência, da excelência, da afirmação. No limite: o dever é uma coerção; a virtude, uma liberdade.” (COMTE-SPONVILLE, 2011)

Por outro lado, o próprio pensador francês admite que nem todo amor é virtuoso e cita como exemplo a dificuldade que teríamos para admirar alguém que dissesse: “Amo o poder e a crueldade”.

Vale lembrar aqui a definição de COMTE-SPONVILLE (2011) para virtude: “É uma qualidade moral; em outras palavras, uma disposição que nos torna melhores, ‘mais excelentes’, como dirá Montaigne (…), ou simplesmente mais humanos”. A referência a Montaigne (1533 – 1592) é sucedida por uma frase extraída dos “Ensaios”: “Nada é tão belo e tão legítimo quanto fazer bem o homem e devidamente”. Logo, a virtude seria “uma qualidade, uma excelência”, que nos permite realizar – da melhor maneira possível – nossa humanidade, cumprindo, quando necessário, com o nosso dever.

Assim como o amor, ou pelo menos certo tipo de amor, é com toda certeza uma virtude, acrescenta COMTE-SPONVILLE, com igual certeza o amor não é um dever: “Por que? Porque, explica Kant, aqui bem próximo da experiência comum, ‘o amor é uma questão de sentimento e não de vontade’. Ora, não se pode ordenar um sentimento.”

                                         AS FORMAS DE AMOR

Sabemos que este sentimento tem várias formas.  A língua grega registra três palavras para se referir ao amor – Eros, Philia e Ágape. Este é o ponto de partida de COMTE-SPONVILLE (2011) em seu livro “O Amor”. Depois de abordar a questão “virtude e dever”, ele passa a discorrer sobre “Eros ou o Amor-Paixão, Philía ou a Alegria de Amar e Ágape ou O Amor sem Limites”, assinalando as diferenças entre esses três tipos de amor.

Na Grécia Antiga, o Amor era antes de tudo um deus poderoso. “Nas palavras do poeta Hesíodo (c. 800 a.C), Eros era o mais bonito dos deuses, um ‘solta-membros’ de mortais e imortais, pois a ele se associava o descontrole dos movimentos. Era força originária e animadora, um dos poderes primordiais que deram origem ao mundo como o conhecemos”, explica SANTIAGO (2011), antes de reforçar a ideia de que será principalmente pelas mãos de Platão (428-348 a. C.) que esse deus passará a ocupar lugar de destaque no pensamento filosófico.

Em “O Banquete” vários personagens reunidos discursam acerca de Eros: sua natureza, sua origem, seus poderes: “O quadro é a matriz de questões e temas que vão marcar toda a reflexão sobre o amor e o desejo no decorrer dos séculos seguintes” (SANTIAGO, 2011). O banquete (ou symposium) a que se refere o texto platônico, como bem sabem os leitores de filosofia, é um encontro de amigos para conversar, beber e comer . No caso abordado, trata-se da comemoração do sucesso de um ateniense, Agathón, num concurso de apresentação de tragédias. No decorrer do encontro, são ouvidos sete discursos sucessivos. Os principais cabem a Aristófanes e, claro, a Sócrates.

Aristófanes fala de uma época em que a natureza humana era bem diferente: éramos completos, digamos assim, e existiam três tipos de seres: homem duplo, mulher dupla e homem-mulher (andrógino), todos com quatro braços, quatro pernas, dois rostos e uma cabeça. No entanto, segundo o resumo feito por SANTIAGO (2011), “o sentimento de completude exacerbou os humanos a ponto de quererem subir aos céus e confrontarem os deuses. Em punição por tal atitude desmedida, foram partidos ao meio por Zeus. Desde então, Eros é a força que nos move a procurar nossa metade perdida, único modo de restaurar a antiga natureza completa, ao fazer de dois apenas um.”

O motivo para o grande interesse despertado pelo discurso de Aristófanes hoje em dia, na opinião de COMTE-SPONVILLE (2011), seria o fato de sua fala vir ao encontro de nossos desejos e de nossas ilusões, ou seja, descrever o amor como gostaríamos que fosse: único, exclusivo.

Em seu discurso, Sócrates (inspirado nas lições de Diotima) 2 discorre sobre a paternidade do deus Eros, que explicaria muita coisa sobre os sentimentos amorosos. Mais uma vez, apresentamos a versão resumida de SANTIAGO (2011): “O amor é duplo porque o deus é filho de Pobreza e de Recurso; engendrado assim num paradoxo, entre a carência e o poder, e justamente por estar nesse entredois, é capaz de ligar homens e deuses. Se a carência e o anseio de completude lhe são inerentes, igualmente o é a altivez com que inspira a produção de tudo o que é belo, bom, e especialmente impulsiona à busca do saber.”

Eros é, portanto, um deus complexo. Fica difícil mantê-lo atado ao “amor-paixão” da forma restrita a que nos propusemos inicialmente (homem-mulher/homem-homem/mulher-mulher). Platão (ou o seu Sócrates) acredita que sem Eros seria impossível a própria Filosofia – um amor na forma de philia pelo saber (sophia).

Ao se comparar as falas de Sócrates e Aristófanes no “Banquete”, pode-se chegar a uma interessante conclusão: “Toda a ambiguidade do amor, e de nosso próprio ser na medida em que amamos, surge nesses discursos. Por um lado, o sentimento de plenitude, possível pelo reencontro com nossa cara-metade; por outro, a marca inconfundível da carência: os objetos do amor e de desejo, explica Sócrates, são sempre aquilo que não temos e de que sentimos falta. Buscamos a plenitude porque não somos mais plenos; filosofamos porque não possuímos o saber que desejamos.” (SANTIAGO – 2011).

                                                 O PARADOXO

A esta altura, é chegada a hora de nos aprofundarmos no paradoxo apresentado na grande obra platônica: se o amor-paixão é falta, sua concretização não nos conduziria ao tédio dos seres satisfeitos?

COMTE-SPONVILLE (2011) trata objetivamente deste paradoxo em sua obra “O Amor”. Segundo ele, quando desejamos e não temos, obviamente sofremos com esta falta. “Quem tem fome e não tem o que comer, sofre. O apaixonado por alguém que não o ama, igualmente sofre”, enfatiza, admitindo que quando temos o que desejávamos, o risco é outro: o tédio.

Como já vimos, para Platão, o trabalho de conhecer não é apenas uma tarefa intelectual, como também obra de amor. Os filósofos, como “amantes da sabedoria”, trabalham sob o signo de Eros. De acordo com PESSANHA (2010), no entendimento do filósofo de Atenas, “a exemplo da matemática, também o amor estabelece ligações entre o sensível e o inteligível, realiza mediações, é um intermediário”. Assim, a falta a que se refere Platão só seria preenchida após uma escalada em que alguém – conduzido pelo amor – “subisse” do sensível ao inteligível.

Por sua vez, COMTE-SPONVILLE (2011) discorre sobre duas saídas em Platão. A primeira é o parto na beleza, segundo o corpo e segundo o espírito (a procriação, a criação artística), com vistas à eternidade: “A primeira saída se apoia na própria essência do amor, mas em sua relação com o tempo. Eros não deseja apenas possuir o bem (já que ele é falta). Ele deseja possuí-lo sempre: ele é “desejo de posse eterna”. É por isso que todo amor é amor à imortalidade. Ele quer durar sempre, possuir sempre, gozar sempre. Mas como, se somos mortais? Platão responde: pela geração ou pela criação. O amor em sua verdade é como “um parto a termo”, ele tende ao “parto na beleza, segundo o corpo e segundo o espírito”. Ele é o “amor da geração e do parto no belo”. Em suma, a saída do amor é a criação e ou procriação, a arte ou a família: fazer obras ou filhos, que normalmente sobrevivem a nós, a fim de alcançar por eles a única imortalidade que nos é acessível.”

O próprio COMTE-SPONVILLE (2011) destaca que se trata de “uma saída decepcionante”, já que ter filhos nunca foi suficiente para, como se diz popularmente, “salvar uma relação amorosa”. A segunda saída observada por ele em Platão é a “evolução do amor” (a escalada a que nos referimos anteriormente) do primeiro ao sexto grau, proposta através de Sócrates/Diotima. Seria algo chamado de “dialética ascendente” do “Banquete”. Passaríamos do amor a um corpo bonito (amor sensual) ao amor à beleza de todos os corpos (amor estético) e, no terceiro grau, amar as belas almas (amor à beleza psicológica). Mas isso não é tudo. Há o quarto grau, ou seja, o amor à beleza que está nas ações e nas leis (beleza moral ou política); o quinto grau, amor à beleza das ciências – o esplendor da verdade e, enfim, o sexto e último grau: a beleza do verdadeiro (beleza do conhecimento, beleza do conhecimento ou beleza da razão).

Embora bem articuladas, as saídas platônicas ainda não satisfazem COMTE-SPONVILLE (2011). Diz ele: “Se quisermos salvar nossas histórias de amor, ou simplesmente compreender como podem existir, às vezes, casais felizes, necessitamos de outra coisa. Nem as obras, nem a família, nem a religião são suficientes. Como os amantes podem ser felizes? (…) Como Platão não explica isso, pelo menos não de forma satisfatória, necessitamos de outra teoria do amor.” (COMTE-SPONVILLE – 2011)

O pensador francês acrescenta: “Não há amor feliz nem felicidade sem amor. Isso supõe que o amor, assim como o ser, se diz em vários sentidos”. Ele recorre então, na segunda parte do livro, a Espinosa (1632-1677), e por tabela, a Aristóteles (384-322 a. C.): “Para Espinosa o amor é desejo, mas não é falta. O desejo é potência; o amor é alegria. Espinosa, sem dizer e talvez sem saber, recupera aqui a bela ideia de Aristóteles (…): “amar é regozijar-se”. A definição que Espinosa dá do amor é um pouco mais complicada, mas vai no mesmo sentido: “O amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”. Amar é se regojizar com; é esse “com” que Espinosa acrescenta, de certo modo à fórmula de Aristóteles.” (COMTE-SPONVILLE, 2011).

Ainda restaria uma questão intrigante: é possível que o amor-paixão não passe de uma forma de egoísmo, ou seja, é possível que ao amar alguém eu esteja na verdade “amando” algo que sinto e não propriamente aquela outra pessoa que acredito amar? Enfim, é possível estar amando apenas o sentimento de estar amando e seus benefícios psicológicos? Neste caso, o amor-paixão não seria apenas uma ilusão de amor?

Segundo a filosofia cartesiana, eu sei que existo e sei que eu sou eu. Então, voltando aos nossos questionamentos, se quando amo, eu sou também o outro – e não há certeza de que o outro existe, isto significaria que eu deixaria de ser eu e, assim, deixaria de existir?

1) O amor seria um risco de perda de identidade?

2) Ou amar alguém reforçaria o nosso “ser e estar” no mundo justamente porque somos seres incompletos e isto é bom?

Na segunda hipótese, quem se definisse pelo amor, se libertaria da indiferença ante as diferenças, construiria uma relação que envolvesse desejo, amizade e intelecto e fecharia o Círculo de Eros. Haveria uma combinação e não uma complementação. Assim, estaria com razão o poeta quando disse que “ninguém é feliz sozinho”, mas não porque somos carentes de algo (que não temos). Ao amar alguém, encontraríamos fora de nós amor idêntico ao que sempre esteve em nós – o que é diferente de buscarmos o que nos falta.

Depois desta jornada, deduzimos que Eros, o Amor-Paixão – pelo menos da forma que inspirou poetas e compositores – não existe isoladamente das outras duas formas mencionadas no início do trabalho, isto é, Philía e Ágape.

Voltemos a COMTE-SPONVILLE (2011): “Nossas experiências amorosas ou de casal, nossas experiências de amor, se situam quase sempre entre um e outro desses três polos (…) e tomam emprestada uma parte da força ou das fraquezas deles. O erro estaria em absolutizar as diferenças entre esses três tipos de amor, considerá-los três mundos estranhos um ao outro, ou três essências separadas. Não é assim. Não são três mundos distintos, nem três essências separadas.”

                                               CONCLUSÃO

              “O amor não se define, sente-se” (Seneca)3

O idealismo platônico aparentemente deprecia o corpo e o mundo real em comparação ao mundo das ideias. Mas, pelo que observamos em “O Banquete”, o amor é a busca da beleza e da elevação em todos os níveis – logo, não excluiria a dimensão corporal. O filósofo entende que só pela “escalada do amor” o homem se realiza plenamente.

Do Círculo de Eros avançaríamos ao Amor Esférico (um conceito nosso), isto é, além da capacidade de amar uma outra pessoa, completando-nos mutuamente, seria por meio do amor que realizaríamos a nossa plena humanidade. Teríamos o sentimento positivo – inspirado pelo “amor aos muito próximos” – estendido, ampliado, até se tornar o que o senso comum costuma chamar de “amor ao próximo”. Com isso, encontraríamos uma força unificadora e harmonizadora a partir do mundo privado para o público.

Não é algo simples. O noticiário sobre o desamor – intolerância, preconceito, ganância e ódio – se já não causa mais estranheza pela sua repetição, instiga-nos a propor outra questão: haveria uma forma de amor satisfatória – de acordo com os parâmetros filosóficos apresentados – para os dias atuais, em que o tempo para a contemplação é escasso e a substituição do real pelo virtual parece ser um caminho irreversível?

A concepção amorosa de “O Banquete” ainda faria sentido nesta nossa era de exagerado culto à coisificação do prazer? Ou, em uma segunda formulação, nos tempos modernos, em que se acirra o individualismo e tudo parece tão efêmero e descartável, é possível a concretização do “amor esférico”, que satisfaça os desejos de prazer, a realização do bem ao próximo e, claro, a sensação de felicidade?

Finalmente, nesta vertigem dos dias saturados e das horas apressadas dos relógios digitais, neste embalo do “tudo ao mesmo tempo agora”, ainda haveria espaço para o amor romântico e sereno cantado pelos poetas ao longo dos séculos? A resposta, acreditamos, caberá menos aos filósofos do que aos próprios amantes.

NOTAS

1) Sobre a conhecida frase de Santo Agostinho, disse Julián Marias: “Ama e faze o que queiras; o que queiras, não o capricho, não o teu bel-prazer, mas sim o que possas querer, o que possas verdadeiramente querer. Isso está a dois passos da idéia de Kant, para quem o único bem é a boa vontade. É a única coisa que é verdadeiramente valioso para Kant: o que podemos querer. Não os sentimentos, não o capricho, não, não… mas o que possas realmente querer. Ama e faze o que queiras. Se fazes realmente por amor, podes fazer o que queiras. O que possas querer realmente, o que possas querer amorosamente, por amor. Naturalmente, se se suprime o “ama”, destrói-se a frase, como é natural. Não é faze o que queiras, o capricho, ou o que te agrade, ou o que te convenha; não, não, pelo contrário”.

2) Sócrates diz no “Banquete” que vai apresentar o discurso sobre o amor que ouviu “de uma mulher de Mantineia, Diotima, que nesse assunto era entendida e em muitos outros”.

3) Lucius Annaeus Seneca(4 a.C – 65), foi um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano.  Sua obra literária e filosófica, tida como modelo do pensador estoico durante o Renascimento, inspirou o desenvolvimento da tragédia na dramaturgia europeia renascentista.

 

REFERÊNCIAS

 

ABBAGNANO, Nicola – Dicionário de Filosofia, Martins Fontes, 2012, São Paulo.

BÍBLIA SAGRADA – Editora Rideel, 1997, São Paulo.

COMTE-SPONVILLE, André – O Amor, Martins Fontes, 2011, São Paulo.

FROMM, Erich – Análise do Homem, Zahar Editores, 1983, Rio de Janeiro.

HOUAISS, Antonio – Grande Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (UOL) http://houaiss.uol.com.br/

MARIAS, Julián – Agostinho – Conferência do curso “Los estilos de la Filosofía”, Madrid, 1999/2000 http://www.hottopos.com/harvard3/jmagost.htm

PLATÃO – Diálogos/O Banquete, Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1972, São Paulo.

RUSS, Jacqueline – Dicionário de Filosofia, Scipione, 2003, São Paulo.

SANTIAGO, Homero – Amor e Desejo, Martins Fontes, 2011, São Paulo.

SCHOPENHAUER, Arthur – Metafísica do Amor/Metafísica da Morte, Martins Fontes, 2004, São Paulo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Esquecer para não sofrer

A-Corneta-57e4b8a98ebe4__700

Cervantes: “Ó memória, inimiga mortal do meu descanso!”.

Você é o que você se lembra? Segundo Locke, a memória autoconsciente é a base da identidade pessoal. Grosso modo, o que não podemos lembrar não faz parte de nós. Mas “quem”, pergunto euzinho, escolhe em nós o que lembrar e o que esquecer? Um mecanismo eletroquímico? Um “Eu profundo”? A alma? O coração?

Roberto & Erasmo: “Animal ferido/ Por instinto decidido/ Os meus rastros desfiz/ Tentativa infeliz de esquecer…”

O problema parece não ser a lembrança em si, mas a carga emocional que ela transporta. Assim, se a gente pudesse fugir, apagar do nosso HD memórias que provocam amargura e dor, como a Clementine do filme de Gondry & Kaufman, teríamos um pouco mais de paz interior, porém perderíamos uma parte de nossa identidade. Talvez valesse a pena, talvez não… (quem ainda não viu o filme?).

A psicanálise propôs o inverso: o enfrentamento. Afinal, quando o desejo entra em campo, o jogo complica. 

Johann Paul Richter: “A memória é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos”.

Desejo – razão – sublimação… o universo humano é recheado de conceitos e afetos. O termo “diálogo” é resultado da fusão das palavras gregas dia (através) e logos (traduzida para o latim como ratio = razão). “Diálogo” é também “passagem”. É preciso falar, conversar, abrir-se. Quando lidamos racionalmente com nossos fantasmas, eles vão diminuindo de tamanho e muitos até desaparecem. Os que ficam, às vezes sossegam. Incorporam-se à paisagem, deixam de incomodar-nos com suas lanças pontiagudas.

Aristóteles: “Graças à memória acontece nos homens o que se chama de experiência”.

Velhos marinheiros sabem disso. 

 

Sobre a memória, encontrei este texto simples e interessante:
http://mundodapsi.com/os-7-pecados-da-memoria/
Ilustração: obra do artista digital brasileiro Marcel Caram, que se inspira em Salvador Dali, René Magritte e De Chirico.

Suave revolução

profeta gentileza

Desconfio que haja algo poderoso nisso.
Seriam as mini gentilezas o urânio da felicidade possível?

Em minhas viagens sonolentas conclui que toda revolução na história da humanidade segue o princípio da chama que se espalha, ou seja, das ideias “em rede”- como se diz hoje em dia. Assim, as pequenas gentilezas, se praticadas em escala, seriam uma espécie de antídoto do ódio, do preconceito, da “Lei de Gerson” (coitado, o cara é o maior gente boa e ficou com esse vínculo) etc até se cristalizarem como práxis humana mesmo, em todos os países.

A gama do que chamei aqui de “pequenas gentilezas” (o termo já tá rolando na internet) é enorme e vai desde a boa educação no relacionamento com as pessoas e gentilezas no trânsito a gestos importantes de solidariedade que beneficiam grupos carentes. Um pouco de consideração e respeito pelos semelhantes e algumas atitudes simples certamente despressurizariam a vida e tornariam todos mais felizes, dentro do possível.

Enfim, isto quase que daria um livro.

 

(Foto: Profeta Gentileza – G1 – Reprodução/EPTV)

 

Estrada

Andarilho (2)

Doem-me os pés e a alma empoeirada. Meus olhos injetados de sonhos ardem como se olhassem o fogo do inferno.

Andarilho, forasteiro, equilibrista: homem em desalinho com o seu tempo. Estrangeiro no mapa mundi, só um lugar me bastaria: o sítio no coração da ausente. Só uma voz me daria sossego, mas ela escolheu o silêncio infinito.

Não, meu amigo. Não, não minha senhora: não há nada que eu possa fazer a não ser devorar estradas, os dentes vermelhos de terra.

Então eu sigo amando as árvores, os pássaros. Sorrio às vezes para as vacas na paisagem. Sou sempre partida, como se houvesse um porto, como se pudesse um dia alcançar o Sol.

Coleciono despedidas.

Além dos meus rastos, deixo pelo caminho pedaços mornos do que fui e quis ser um dia.

Emagreço, tenho sede. Minha mochila, verde como a esperança, perdeu a cor.

E no entanto é preciso cantar, caminhar é preciso. Até o dia em que o meu pó irá se misturar ao pó da estrada.

 

Ilustração: Detalhe de foto da internet, republicada em vários sites sem identificação de autoria. Se você é o autor ou conhece a fonte original, por gentileza entre em contato comigo que darei o devido crédito.

 

 

 

 

 

 

Carpe diem!

O beijo Rodin

A expressão latina carpe diem (“colha o dia”, no sentido de “aproveite o agora porque do amanhã não se sabe”) tornou-se popular com o filme “Sociedade dos poetas mortos” (EUA, 1989). O autor da frase – na verdade, parte de um verso – é o poeta romano Horácio, que viveu de 65 a 8 aC.

Vejam o trecho do poema em latim original e na tradução de Orlando Pinheiro:

“Carpe diem quam minimum credula postero

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi

finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios

temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.

seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,

quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare

Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi

spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida

aetas: carpe diem quam minimum credula postero.

Tradução:

“Colha o dia, confie o mínimo no amanhã.

Não pergunte, saber é proibido, o fim que os deuses

darão a mim ou a ti, Leuconoe;

não brinque com os adivinhos da Babilônia.

É melhor apenas lidar com o que cruza o seu caminho.

Se muitos Invernos Júpiter te dará ou se este é o último

que agora bate nas rochas da praia com as ondas do mar.

Tirreno: seja sábio, beba o seu vinho e para o curto prazo

reveja as suas esperanças.

Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento está a fugir de nós.

Colha o dia, confie o mínimo no amanhã.”

                                                          * * *

Esse espírito de urgência da felicidade está presente em inumeráveis poemas e canções escritos em todos os tempos. O francês Baudelaire (1821-1867),  por exemplo, recomenda a embriaguez “com vinho, poesia, virtude…” para não sentirmos o fardo terrível do Tempo, que nos “quebra as espáduas, vergando-nos para o chão”.

Nesta seara, outro nome que não pode ser esquecido é o do matemático, astrônomo e poeta persa Omar Khayyam (1048 – 1131), autor do famoso “Rubaiyat” (Quartetos), igualmente um porta voz do carpe diem, enaltecendo o amor sensual, destacando a brevidade da vida e indicando o (êxtase do) vinho como uma porta para a transcendência. O fato é que o refrão “deixa a vida me levar”  na voz do sambista Zeca Pagodinho (grande apreciador de cerveja), ou o “amanhã não se sabe”, dos Titãs, ou ainda o “vou deixar a vida me levar” do grupo de rock Skank (um dos muitos nomes da maconha) têm raízes milenares.

A certeza da finitude da vida e, pior, a incerteza quanto ao nosso prazo de validade são persistentes apelos para que a gente aproveite o momento, tente extrair a seiva doce de cada dia, nem que às vezes dê algum trabalho perfurar a casca.

“Os meses escorrem do calendário com a velocidade de um susto” (N.C.).

Na contramão dessa ideia, existe o senso de responsabilidade defendido por pensadores moralistas europeus e norte-americanos. A preocupação com a saúde, com o futuro, com a velhice etc. Claro: isto aqui ficou vago demais e poderia ser aprofundado. Eu deveria falar dos hedonistas, dos epicuristas e dos estoicos, das diferenças essenciais entre eles, citar o gigante Aristóteles da “Ética a Nicômaco”, mas estou com uma preguiça macunaímica. É fevereiro. O dia amanheceu ensolarado, lindo, convidativo ao vinho, aos devaneios…

Ilustração: “O Beijo”, de Rodin

Tradução de “Carpe Diem” de Orlando Pinheiro http://orlandodesign.blogspot.com.br/2008/09/carpe-diem-quam-minimum-credula-postero.html

 

Caravelas

caravelasok

Tudo tem soado tão estranho, eu sei.

No jogo das palavras

enrosco-me, arranho-me.

O lodo e o ludo se misturam

no sopro morno das manhãs.

Sonolentos versos voam

entre nuvens-cãs.

No fundo dos sentidos,

sentimentos fervem

enquanto minhas caravelas

sonham no porto

com suas velas vãs.

 

Crédito da imagem: réplicas da nau Santa Maria e das caravelas Niña e Pinta, ancoradas no North River, Nova Iorque, após a travessia do Atlântico para a Feira Mundial de Chicago, em 1893 (Museu Marítimo)

Londrix, a viagem

 

cropped-londrina-estac3a7c3a3o.jpg

O texto a seguir, exatamente com este título, foi publicado originalmente no dia 10 de dezembro de 1994 em uma edição especial da “Folha de Londrina”, em comemoração aos 60 anos da cidade. Nelson Merlin era o diretor de redação e o coordenador editorial do caderno comemorativo foi Egídio Brizola. 

LONDRIX, A VIAGEM

Longa avenida. Lembranças passeiam como lesmas na parede de látex. Deixam rastros prateados no azul da memória.

O barro gruda nas botinas, nos sapatos, na alma.

O trem se desvia. Um disco voador pousa sobre o restaurante do Toninho.

Olhos filmam a cidade. Noite, estrelas no lago. Caleidoscópio na cabeça.

O luminoso tinge de púrpura o rosto da indiazinha maltrapilha.

O hot dog na Higienópolis, o pastel na Sergipe, o suco na Rodoviária. A sinuca e o espetinho no Tio Mário.

Lunagem. Uma trilha sonora dos Beatles a Bernardo Pellegrini, passando por Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Robinson Borba, Patife Band, Cida Moreyra, Marcia Salomon…

Londrina, coração de árvore.

Poesia nos trilhos: Nilson Monteiro, Ademir Assunção, Rodrigo Garcia Lopes, Maurício Arruda Mendonça, Marquinhos Losnak. Amigos, tantos. Sinos e sinas.

O homem vermelho de Domingos Pellegrini caminha por uma alameda. José Joffilly debruça-se sobre a História. Marinósio Filho canta uma marchinha.

A palavra lâmina move-se nas entranhas. Rimos das rimas. Proteus e Prometeus desvendam segredos no “Triângulo das Bermudas”.

Bacantes, saltimbancos, duendes, travestis. Acordes de um blues.

Ipês bordam tapetes brancos, roxos e amarelos nas calçadas. Perobas elegantes acenam ao longe. Flamboyants sorriem.

Na torre de vidro, os automóveis silenciam. O Relojão do edifício América observa as formigas operárias. Cigarras zunem.

Sirenes. Bandeiras! “Tu és Londrina querido, o nosso time de astros”. Paixão em azul e branco.

Toda cidade é uma esfinge. Um cão sem dono me fareja. Olho nos seus olhos tristes. Por alguns instantes ficamos assim, um tentando entender a fome do outro.

Foi tudo tão de repente. Estamos envelhecendo, a cidade e eu. O diabo é que eu estou muito novo pra ficar velho!

 

 

 

 

 

Coisas de Pessoa

pessoa eus

Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
(Fernando Pessoa, “Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa”. Lisboa: Ática, 1966.  p. 93.)

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço com aquilo a que eu chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figuras, movimentos, caráter e história, várias figuras irreais que eram para mim visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas  não alterando nunca a sua maneira de encantar. (…) Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. (…)”

(Fernando Pessoa,  excerto de uma carta a Adolfo Casais Monteiro, 13 de Janeiro 1935)

Vale uma espiada…

http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2233

Coleção

nosferatu sombra

I

Quando criança, colecionava medos.

O cuco anunciava a hora da cama, eu cobria a cabeça com o lençol.

Tinha medo do escuro, do Homem do Saco, da ira de Deus e do fim do mundo.

Tinha medo especialmente do Bicho Papão!

 

II

Entre comédias e dramas, o menino criou asas, cresceu.

Chutou o balde dos medos,

fisgou estrelas no anzol;

montou a vida em pelo,

dançou sapateado no breu.

 

O relógio cuco quebrou,

doaram a relíquia pro museu.

 

III

Um belo dia descubro:

No escuro, a vista descansa.

Deus é um cara bacana.

O Homem do Saco, coisa de adulto sonso.

E o Bicho Papão?

O meu Bicho Papão sou eu.

 

 

 

Até que ponto você é você mesmo?

gattaca

Estava pensando no “nada será como antes”.

Estava pensando em tudo o que já fui e no que me transformei, a crise do “aquilo deu nisso” – meio normal na minha idade, quando me veio à mente a maravilhosa imagem do  Barco de Neurath. Em seu “Anti-Spengler”, Otto Neurath (1882-1945) comparou o corpo dos nossos conhecimentos a uma embarcação que precisa ser consertada em pleno mar. “Somos como marinheiros que têm de reconstruir seu barco no mar alto, já que não podemos começá-lo de novo a partir da base (…)”, escreveu o pensador austríaco.

A ideia é que todas as partes podem ser substituídas, desde que fique o suficiente do barco para não afundarmos. Simon Blackburn, no “Dicionário Oxford de Filosofia”, diz que “esta imagem se opõe à ideia de que o conhecimento deve repousar sobre fundamentos que, sendo imunes à crítica, transmitem essa imunidade a outras proposições através de uma espécie de corrente de transmissão.” Como se percebe, o assunto pode render 327 dissertações acadêmicas, além das que possivelmente já foram feitas.

Na verdade, não é exatamente este o tema da nossa conversa. Acordei intrigado neste sábado com a questão “até que ponto eu sou eu?” Obviamente corro risco de estragar o clima da feijoada e do futebol. Sorry, Capucho! Agora é tarde.

Vamos pensar juntos. A pessoa resolve fazer uma cirurgiazinha plástica aqui, um enxertozinho ali, pinta o cabelo, cobre a pele com tatuagens, emagrece (ou engorda, o que parece sempre mais fácil): seu corpo se transforma, sua forma se altera até um ponto em que seus próprios conhecidos se espantam, ainda que ninguém tenha nada a ver com isso. Os casos da cantora Anita e do ídolo pop Michael Jackson servem de exemplo. “Ela era outra mulher antes da fama e do dinheiro”, dizem as más línguas das pessoas boas – ou vice versa. Ou seja: Anita teria modificado tanto o seu aspecto físico que acabou se transformando em outra Anita. Já Michael Jackson, fez várias plásticas e foi criticado por fofoqueiros porque teria se submetido a um “branqueamento” com resultados estéticos duvidosos (oficialmente, o cantor teria sido vítima de um problema de pele, uma doença).

Ora, Anita continuou sendo Anita; Michael Jackson morreu sendo Michael Jackson; o humorista Laerte é Laerte, vestindo-se como queira; e Roberta Close sempre foi essencialmente Roberta Close.

Você era você quando fez xixi na maternidade,  quando comeu o lanche do coleguinha na pré-escola, quando se tornou adolescente, adulto e idoso. O processo faz parte de você. Tudo muito simples, não é mesmo? Huumm… Vamos complicar um pouco. Suponhamos que você tivesse uma dupla personalidade, tipo o Médico e o Monstro, Ruth e Raquel ou a personagem de Glória Menezes na primeira versão de “Irmãos Coragem”: qual delas seria realmente você?

Mas tenho aqui algo melhor ainda!

Assisti a “Gattaca – Experiência Genética” (EUA-1997) anos atrás, por indicação do amigo, médico e escritor José Eduardo Siqueira.  Fui rever o filme numa aula da disciplina optativa de Bioética, no curso de Filosofia da UEL. “Gattaca” é ficção científica futurista, com pitadas de Hitchcock. Seu enredo poderia ser toscamente resumido  da seguinte forma: num futuro não muito distante, os seres humanos são criados geneticamente (Filhos da Ciência) para compor uma sociedade mais forte e saudável. Pessoas concebidas biologicamente (Filhos de Deus) são consideradas inválidas. Um casal tem dois filhos: o primeiro, biológico, e o segundo, geneticamente desenvolvido. Vincent, o primogênito fracote, quer ser astronauta. Isto não é pra ele, um “inválido”. Para realizar o seu sonho, decide assumir a identidade de um atleta que ficou paralítico por causa de um acidente. Os sacrifícios a que Vincent se submete para ficar fisicamente parecido com o ex-atleta são impressionantes.

Vamos supor que,  em vez de marinheiros como no caso do Barco de Neurath, você topasse com um bando de cientistas malucos que o aprisionasse num castelo equipado com os mais modernos aparelhos da área médica. De tempos em tempos, eles “consertariam”  algo em você, isto é, substituiriam alguma parte do seu corpo: pele, dentes, ossos, músculos e tendões. Um serviço caprichado, que até você ficaria satisfeito ao ver o resultado no espelho. Trocariam depois seu coração e outros órgãos. Submeteriam você a uma transfusão de sangue radical. Quando praticamente tudo em seu corpo fosse novo, eles realizariam um transplante de cérebro!

E soariam os acordes iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven!

(Ilustração: detalhe do cartaz de “Gattaca”)